Dallier e o Morro da Conceição

Veja meu outro blog de crônicas. http://dalliercronicas.blogspot.com

28.3.06

MINHA TARDE COM IBERÊ


Comecei a pintar em 1970, de forma primitiva, já em 1976 sentia um grande desejo de mudança, embora meus quadros dessa primeira fase vendessem, bem e eu já participara de diversos salões de arte, entre os quais, Salão de Belas Artes, Salão de arte Moderna e houvesse participado no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro de uma exposição dos melhores artistas primitivos do Brasil. No ensejo de mudar meu caminho na pintura, nesse ano de 76. pintei um pequeno quadro tamanho 20x022 ,em dado momento de desespero, peguei a única telinha que possuía e deixei que meus instintos falassem mais alto. Peguei o quadro dias mais tarde e o levei ao salão de cabeleireiro de um amigo também pintor e como ele não se achava no local , deixei o quadro para que visse depois. Certo dia Iberê Camargo foi ao determinado salão deste meu amigo para cortar seu cabelo (Iberê foi professor desse pintor), viu o pequeno quadro, pendurado na parede do salão, perguntou de quem era e deixou um recado para que eu o procurasse pois desejava me ajudar. Esse recado só fui saber tempos depois, transmitido a mim pela senhora ajudante do salão que me pediu segredo e aproveitou para comprar um quadro meu sem que seu patrão soubesse. Continuei c0m a amizade fingindo não saber do recado até que certo dia fui ao atelier de Iberê com esse " amigo" sem que soubesse do meu conhecimento do recado de Iberê. Chegando lá no atelier da rua Dona Mariana, Iberê me recebeu muito bem sem saber que eu era o pintor do tal quadro que ele havia visto. Mostrei algumas fotos de meus quadros primitivos ,conversamos ele me deu alguns conselhos e se interessou muito por um quadro que pintei e que representa a minha mãe com a casa que eu nasci ao fundo [ILUSTRAÇÃO ACIMA], pediu-me que levasse o quadro para ele ver pessoalmente, fato que não chegou a acontecer porque tempos depois a fatalidade chegou cedo demais fazendo com que aquele acidente trágico que acabou com a vida de um homem acontecesse e eu não o visse mais. Acompanhei os acontecimentos posteriores através de jornais e mais tarde quando ele inaugurou sua exposição "OS CICLISTAS DO PARQUE" no Parque Lage escrevi um pequeno texto que foi publicado no jornal A Tribuna de Niterói (ver postagem IBERÊ CAMARGO "O MITO" adiante neste blog)

Paulo Dallier, 27 de março de 2006.

Ilustrações: Superior: Quadro da mãe de Dallier, citado na crônica, fotografado por Ivo. Inferior: Dinâmica de carretéis, óleo s/ tela, 100 X 141,3 cm, 1960. Coleção Jones Bergamin. Obtida no site da Fundação Iberê Camargo.

24.3.06

A FATALIDADE VOCACIONAL

Texto de Walmir Ayala publicado no Jornal do Comércio de 11 de maio de 1981 (fotos do ateliê do artista)



“O Centro Cultural Paschoal Carlos Magno, em Niterói , inaugurou uma individual do pintura de Dallier, pintor figurativo de grande interesse e que merece atenção. Despretensioso e discreto, Dallier atua ao correr motivado pelo impulso irresistível de pintar e demonstrando, na coerência de sua produção, a fatalidade vocacional que certamente se sobreporá a toda influência e circunstancialidade. Vimos recentemente belos quadros seus na coleção de Jayme Tiomno, na barra, e endossamos a declaração do crítico francês Jean Pierre Chabloz que enriquece o catálogo.


NASCIDO EM 10 DE JULHO


Nascido em 10 de julho de 1932, o artista Dallier surge nas artes plásticas a 15 de Agosto de 1970. Essa revelação se deu pelo desejo de possuir um quadro, pintado a óleo, mas sua situação não permitia a realização desse sonho.

Sonho é algo que não morre se é sonho visceral. Era à vontade da arte se manifestando desejosa de atualização. Os primeiros quadros vieram com a pureza, a força e a beleza da Arte Naif.


O exercício de fazer o fez trilhar um longo caminho. Recriou temas que a força de sua dramaticidade fez povoar telas interpretando a beleza e dura vida de pescadores, a graça do vento movimentando os cata-ventos, a sensualidade das mulheres, os mistérios das igrejas, o encantamento das paisagens, a magia da série de gatos azuis e outros tantos que criaram vida a partir de suas emoções.

Não sabia que trilhava um caminho sem volta, muitas vezes labiríntico.

Seguiu e segue a dura sina dos que trazem o novo, a intempestividade para a vida.


Isabel Pequeno-Rio de Janeiro, 21 de março de 2000.
Catálogo da exposição “30 anos de pintura”



Fotos: 1) Dallier; 2) quadro "Os Músicos", exibido na exposição A Cara do Rio; 3) Dallier à janela de seu ateliê.

MORRO DA CONCEIÇÃO






PROJETO MAUÁ – MORRO DA CONCEIÇÃO

Sons. O galo do quintal do vizinho canta. O entregador, buzinando a bicicleta com o cesto carregado de pães fresquinhos. Vassoureiro! Olha o gás! Jornal de domingo! Soldados da 5ª Divisão de Levantamento do Exército cantam enquanto correm, seguindo o comandante. Crianças brincam na rua. O jogo de “aliado” no bar está animado, vozes altas e conhecidas de vizinhos. Mulheres conversam sentadas em cadeiras na calçada. Ave Maria às seis em ponto, emitida da torre da Capela na Rua Jogo da Bola. Apito de navio. Batucada do bloco Escravos da Mauá. Afoxé na Pedra do Sal.

Imagens. Casario do início do século. Chão de paralelepípedo e de pé de moleque. Pedras e torres do muro da antiga Fortaleza da Conceição. Nossa Senhora da Conceição no centro da Praça Major Valô, abençoando os passantes. Jardim do Valongo. Observatório. Vistas: relógio da Central, Baía de Guanabara, porto, transatlânticos, Morro da Providência, prédios da Praça Mauá. Ladeiras e becos. Escadas. Igreja e adro de São Francisco da Prainha. Procissão de oito de dezembro. O bar-armazém reunindo moradores e amigos.
Memórias. Antigos carnavais. Festas juninas. Campeonatos de futebol no campo do quartel. Bailes da Rádio Nacional. Imigrantes portugueses e espanhóis. Batuques e oferendas das tias baianas na Pedra do Sal. Estivadores. Origem do samba, partido alto. João da Baiana. Palácio Episcopal. A Baía de Guanabara aos pés do Morro. Barcos atracando no Valongo. Mercado de escravos. Defesa das invasões francesas. A ermida de N. Sa. da Conceição erguida em 1634. Um dos marcos de fundação da cidade.

Lugar poético, lugar histórico, coração do Rio. Calmo e denso de significados, o Morro da Conceição abriga os ateliês de Cláudio Aun, Guenther Leyen, Marcelo Frazão, Paulo Dallier, Renato Sant’ana e Renata Wilner. São artistas com propostas bem diversificadas, mas a força da riqueza do contexto local mobilizou a união do grupo, que realiza periodicamente exposições coletivas. Pode-se dizer que essa associação é fruto de um duplo engajamento: o primeiro na arte e o segundo no elo com o lugar, que envolve consciência patrimonial, admiração pela importância histórica e um estilo particular de vida da comunidade, simples e cordial.

Cláudio Aun é escultor e tem como referência o Surrealismo. Inspira-se na mitologia, mas busca também nos objetos cotidianos um efeito inusitado. A figura humana é elemento chave na obra de Aun, onde imprime uma carga erótica e dramática. O bronze é o material de sua preferência, mas trabalha também com outros metais, com mármore e resina, por vezes apresenta peças de técnica mista. Na escultura de Aun ocorrem transfigurações, combinações de elementos díspares, em operações próprias à estética surrealista, abertas à interpretação e associações simbólicas.

Guenther Leyen é pintor e fotógrafo. Em ambas atividades nota-se uma preocupação com a luz, operando com contrastes, transparências e reflexos. Sua pintura é feita com camadas de tons que deixam transparecer formas sobrepostas. Há um jogo construtivo entre formas geometrizadas e luz na obra de Guenther. A fotografia, paixão recente, também tem um raciocínio construtivo com composições cuidadosas, onde a luminosidade sempre é especial. Utilizando fotografia digital, Guenther pesquisa formas de acabamento ao objeto fotográfico, como enquadramentos, retoques e suportes de impressão, através de um meticuloso processo de manipulação da imagem.

Marcelo Frazão trabalha com pintura e gravura. Atualmente pesquisa a incorporação de objetos e materiais diversos na pintura. Resgata em sua obra técnicas medievais como a encáustica, a têmpera e a folha de ouro, mesclando-as com pequenos objetos como chapinhas, medalhas, chaves, bonecos plásticos, conchas, jornais, em um procedimento conhecido como assemblage, próprio da estética moderna e contemporânea. Essa tensão entre tradicional e novo presente na mistura de técnicas está intrinsecamente relacionada com as reflexões e sensações que sua obra desperta, como nas séries “Réquiem” e “Objetos Litúrgicos”, abordando questões existenciais relativas à morte e vida, ao sagrado e profano, ao corpo e alma. A obra de Frazão é rica de matéria, textura e significado.


A pintura de Paulo Dallier causa grande impacto pela vibração das cores e do movimento. O resultado é o construído e solto ao mesmo tempo, há um despojamento que é a estrutura da obra. A marca do gesto e o contraste das cores que usa conferem os atributos de força e coragem à pintura de Dallier, mas “sem perder a ternura jamais”. Aparentemente espontâneo, o trabalho de Dallier segue um longo processo de amadurecimento, tal como um bom vinho. Começa em telas de pequenas dimensões, como estudos, dando origem a séries em que explora fios temáticos como abacaxis, cata-ventos, gatos, mulheres, figuras místicas e religiosas, músicos. Eles são pretextos, o verdadeiro tema de Dallier é o ato de pintar; em conseqüência nos brinda com o deleite de ver as marcas vigorosas deixadas nesse processo, em sucessivas camadas de velozes pinceladas.

Gesto e cor também são fundamentais na pintura de Renato Sant’Ana. Pesquisador de processos pictóricos e materiais, tal como um alquimista, expande cores vibrantes em telas abstratas de expressivas pinceladas. Em sua trajetória fez diversas experiências com tintas como a série de Pinturas sem Suporte, em que eram derramadas sobre uma superfície lisa onde secavam sem aderir, podendo ser aplicadas em diversos contextos espaciais. Renato Sant’Ana confere uma corporeidade à tinta ao controlar sua densidade mais pastosa ou diluída, agregando textura e relevo à cor.

Já o meu trabalho [Renata Wilner] busca uma significação no aparentemente insignificante, nas rebarbas da sociedade e da arte. Um limiar entre a quase invisibilidade está presente na série “Pequenas Dores”, feitas com alfinetes sobre (entre) camadas sobrepostas de papel vegetal. Nessa série e em outra, feita com fumaça de velas sobre papel seco e/ou molhado, há uma pesquisa de possibilidades não convencionais da linguagem do desenho. Em “Desencaminhados” e “Par ou Ímpar” utilizo sapatos retirados do mangue poluído ao redor da Ilha do Fundão, onde busco tirar partido do estado deformado em que os encontrei, ressaltado pela pintura de branco. Há uma preferência pelo branco (ou preto, metal prateado, espelho, vidro transparente) para que a poética não se dê pela cor, mas por outras qualidades plásticas como forma, desenho e articulação de re-significações de objetos cotidianos, que se dão no universo da afetividade, das relações, do feminino, da temporalidade.
Como grupo, apresentamos aqui um repertório multifacetado de possibilidades artísticas e uma vivência comum de um lugar que é uma pérola do Rio de Janeiro. Pois se buscamos sentido em nossa arte, buscamos também sentido em viver como artistas. O Morro da Conceição é componente essencial desse viver.

Renata Wilner, março de 2006